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Uma cultura do acolhimento

Traduzido por CHRISTIANA BRINDEIRO


No que as técnicas do Kinomichi são diferentes das do Aikido?


Certamente, o caminho da junção das respirações se distingue do caminho da energia, mas a fonte de inspiração é a mesma, Morihei Ueshiba.

Em 1973 eu comecei a praticar o “Aikido de Noro” como era chamado na época, para distinguir do Aikido de Tamura Nobuyoshi. Eu estava fascinado tanto pelo poder do movimento quanto pela beleza do gesto, ao mesmo tempo amplo e justo. Sua prática era larga e fluida: espaçosa.

Em 1979, Noro sensei nos falou com orgulho da nova insígnia amarela e preta que ele acabara de instalar na entrada do dojo da rua Petits-Hôtels. Eu não entendi nada daquela mudança à qual ele parecia se apegar. Mas uma bifurcação, de início insensível, mas que cresceu em seguida, acabara de acontecer. O Kinomichi tinha surgido.

Há uma diferença entre o Aikido e o Kinomichi?

Uma diferença de nome? Para um ouvido ocidental, certamente. Mas um japonês ouve a proximidade das duas palavras. Do e michi, ambas querem dizer o caminho, a via, no sentido próprio e no figurado. Daí a idéia de método. Ki, significa a capacidade de mobilização, o tônus ou a aura, se encontra nas duas palavras. Enfim, no é um termo de ligação que marca a unidade, como designa a união. Mesmo se o “caminho da junção das respirações” não é exatamente o “caminho da energia”, a idéia é a mesma: uma harmonia com o outro trabalhando a acolhida e a expansão de forma suave. Então por que mudar de nome? Por fidelidade ao seu mestre e por respeito à etiqueta japonesa.


Na cultura nipônica, manter o mesmo nome significa observar todas as regras de filiação. Ora, mestre Noro tomou a iniciativa de mudar alguns pontos, integrando elementos europeus, como a ginástica Ehrenfried, à sua formação de Aikido. Então, ele não podia manter o mesmo nome. Como Morihei Ueshiba passa do Daïto-ryu ao Aikido fazendo a fusão de técnicas de origem diversas, Noro sensei passa do Aïkido ao Kinomichi.

Uma diferença de técnica? Observando os gestos e os movimentos do Kinomichi, um aikidoka verá algo familiar: os tai-sabaki são os mesmos, ele vai encontrar irimi-nage no santen, ou ikkyo no ichi; yoko-men parece com a sexta forma de contato. O estágio comum do mestre Noro e Christian Tissier em Nanterre, no dia 8 de abril de 2005, mostrou aos praticantes de ambos os lados que os pontos de tangência eram muitos. Mestre Noro repete que as técnicas do Kinomichi são as do Aïkido. Todos que o freqüentaram sabem a que ponto o ensino de Morihei Ueshiba o mantinha ligado ao corpo.

Então onde está a diferença? Uma astúcia administrativa da parte de Noro sensei para fundar sua própria federação, como eu ouvi em 1983 em críticas ao seu estilo? Isso seria conhecê-lo mal, e não entender uma noção central: a evolução. Noro sensei é um criador de formas e um propagador de energias. Sua prática não esta estabelecida de um vez por todas. O Kinomichi de 1979, ainda próximo do Aïkido não parece com o do 1991, baseado nos alongamentos, nem ao de 2006, ligado a uma dinâmica construída a dois.

Mas no que eles são diferentes? Mestre Noro acha que a diferença entre o Aïkido e o Kinomichi não está na técnica, mas na orientação do ki, na finalidade que se é dada a eles, na forma de manifestá-la. Com minha experiência de “antigo”, vou tentar identificar uma linha de delimitação de acordo com a re-edução física que precisei fazer em meu corpo, inicialmente formado pelo Judô e pelo Aïkido, para conseguir fazer os gestos do Kinomichi.

O abandono de qualquer noção marcial


Para se entender isso é preciso ver a evolução física e mental de Noro sensei. Ele, cuja força era admirada por todo mundo, que se achava indestrutível, ficou mal depois de um grave acidente de carro em 1966. Todo o imaginário guerreiro do budo se viu eliminado. Mas ao mesmo tempo Noro sensei tirou dos gestos do Aïkido a energia necessária para se reconstruir. Mas era necessário ultrapassar uma contradição inerente ao Aïkido: se ele era amor e união, por que ensinava-se o combate? A relação defesa/ataque era só ilusão e vaidade. Desprovida de espírito de rivalidade, era necessária uma técnica sem qualquer traço de combate e, do Aïkido, só manter a acolhida, a respiração fluida, a espiral formadora, sem passar pela força. Então ele renunciou ao princípio de bater:

  • nos movimentos, os golpes atemi que detinham a dinâmica, que simulavam a hostilidade de um adversário, a reação de tori, e a contra-reação de uke, foram eliminados para deixar o movimento correr livremente, sem choques nem paradas, na confiança mútua dos parceiros;

  • nos ukemi, a batida do solo, que devia absorver o choque, foi substituída por um trabalho muito sutil na chegada ao solo, numa suavização do contato que impede qualquer choque. Daí um ukemi silencioso.

Renunciando ao termo “queda”, sinônimo de declínio no espírito ocidental, falamos simplesmente de girada. Não é uma esquiva de uke para fugir de uma dor, mas o último desdobramento do gesto de tori, uke indo para o chão para deixar passar sobre ele o gesto de tori, como uma alga que ondula sob efeito de uma corrente.

O contato

Como reformar meus gestos e minha mentalidade para me livrar da relação de força? Noro sensei parte do início: o momento em que um “atraca” o outro. “Atracar” é capturar, controlar, dominar. Isso foi convertido em contato: um ir em direção ao outro, com uma força igual, para compor uma terceira trajetória. O primeiro gesto do Kinomichi é esse “contato”: esse mesmo entusiasmo em que se dá a mão para criar um caminho comum. Esse acordo nos permite tomar conhecimento do outro, medir suas tensões ou seu abandono, suas inibições ou suas pressões, sua alegria ou sua tristeza. Ele educa nossa fineza. Ele exercita nossa escuta. Ele acalma nossa energia. Ele afina nosso tato. Os praticantes mais experientes chegam a orientar o corpo do parceiro só com um toque de leve que consegue passar uma energia de dinamismo.

O calcanhar

Como me dar ao outro se fico plantada nas minhas posições? Pelo que posso dizer, o Kinomichi adquiriu sua identidade no dia em que o mestre Noro decidiu que para fazer um bom movimento era preciso levantar o calcanhar – o que significava levantar um tabu! Como todos os praticantes de Aïkido, eu tinha aprendido a executar meus movimentos colando meus calcanhares no chão. Foi preciso muito tempo para mudar meus hábitos corporais. Durante anos eu não conseguia me equilibrar nas novas posturas, com o calcanhar levantado, o torso aberto e o perfil à “egipciana”. Até o dia em que eu entendi que o importante não era levantar mecanicamente o calcanhar, mas empurrar o chão com meus dedos. Esse simples empurrão dá uma amplitude à mão e produz uma diagonal que vai dos pés até a cabeça. Ela permite a rotação do corpo e faz uma espiral que se transmite ao parceiro. Tudo sobe do chão para o céu, dos pés à cabeça, para voltar a descer.

A paridade homem-mulher

Como entrar em contato com o outro se eu nego sua diferença? Eu me lembro do dia em que Noro Sensei, no dojo de Petits-Hôtels, escolheu uma jovem como parceira. Até então ele só escolhia “fortões”, capazes de agüentar sua energia.

Mas era a continuação de sua evolução: para do fazer Kinomichi um gesto de amizade, era necessário que todo homem compusesse com uma mulher. A junção de energias não era uma fórmula, mas o embaraço dos praticantes e das praticantes que deviam aprender, a partir de então, não a atracação, mas a “carícia”, não mais o ataque, mas a acolhida. Não havia mais questão de maltratar as mulheres. Era preciso medir seus gestos para poupar seus peitos ao levá-las ao chão! Foi preciso refazer um imaginário viril. Muitos homens ficaram incomodados no início, não sabendo muito o que fazer com aqueles corpos de mulheres, e não mais de Amazonas! Os mais “duros” abandonaram o mestre Noro, à procura de um mestre mais “marcial”.

O Kinomichi é constituído por uma relação entre um don e uma acolhida mútua reversível. Mesmo se o mestre Noro e os antepassados nunca esquecem a origem marcial dessas técnicas, eles não ruminam o passado, mas criam o futuro: o desenvolvimento da energia um com o outro. Pela sua preocupação com o outro, o Kinomichi é um gesto autenticamente ético. Pela sua dissipação dos bloqueios, é uma realização de si através do outro. A tensão agonal transformada em ternura mútua.

O Kinomichi e as armas

Dar outro sentido à energia e apagar qualquer referência ao combate parece excluir a prática das armas. Mas mestre Noro nunca deixou de ensiná-la. É contraditório? Não. Observando a Europa ele constatou que a esgrima ainda era um esporte nobre, mesmo se ninguém mais usava espadas! A prática de uma arma tem um valor educativo. Não são mais “armas” (utensílios de morte), mas “instrumentos” (utensílios de construção).

O sistema de progressão

O “método Noro” existe, mesmo se Noro sensei é o primeiro a rir desses quadros que ocupam o espírito e inibem o movimento! A progressividade do Kinomichi vai do simples ao complexo, da estática à dinâmica, do pequeno número (seis movimentos na aula 1) ao grande número (111 na aula 5), da primeira forma de contato à oitava, o último nível antes de dominar as aplicações dos nove movimentos de base (iten, niten, santen, yonten, goten/ichi, nichi, sanchi, yonchi) sobre as 16 formas de contato, sem contar as variações, os kaeshi-waza, os kokyu, a técnica de joelhos, com muitos parceiros, etc.

O centro dessa progressão não é um repertório de tomadas, mas o domínio do equilíbrio no movimento, da leveza na velocidade, e a capacidade de trabalhar certo com todos os parceiros, sem agredi-los, qualquer que seja a idade, o sexo, a força, a competência.

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